De acordo com a “Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos — Definição das Consequências”, a vida de um trabalhador/trabalhadora, para a Vale, vale 9,2 milhões reais 

Por Ananda Ridart, da página do MAM

Um acidente com trabalhadores da mineradora Vale em Totten, perto de Sudbury, em Ontário, Canadá, deixou 39 pessoas soterradas por vários dias em uma mina que produz níquel. Os funcionários ficaram presos na mina em uma profundidade entre 900 e 1,2 mil metros e saíram por uma escada secundária. O acidente ocorreu durante o transporte de uma pá que se desprendeu e bloqueou a saída do local.

A realidade dos acidentes de trabalho são rotineiros em vários países onde a Vale atua. Amparada na financeirização e na terceirização (que aumenta o ritmo de extração mineral e a insegurança dos trabalhadores), a Vale tem praticado uma série de violações mundo afora, e aqui no Brasil, mais especificamente, nos estados do Pará e em Minas Gerais, onde estão suas maiores operações.

A empresa possui um longo histórico de infrações contra os trabalhadores. Evaldo Fidelis, ex-funcionário da Vale, que atuou por oito anos em Carajás (PA) e foi desligado da empresa em 2019, após ganhar uma ação na justiça contra a empresa, aponta que desde o início dos anos 2000 a situação de precariedade no mundo do trabalho mineral só aumentou.

“Muitos benefícios dos trabalhadores foram cortados, como o plano de saúde, a diminuição do vale-alimentação, assim como o pagamento do teto salarial que é o mínimo e o aumento da carga horária de trabalho”, revela. Conforme explica o trabalhador, isso fez com que as normativas e o padrão de segurança a serem cumpridos não fossem seguidos, dada a pressão dos supervisores para o aumento de produtividade.

Em um desses eventos, Evaldo presenciou a morte de um colega de trabalho que, ao manusear um cabo energizado, sofreu a descarga elétrica de 4200 volts. “Trabalhar em Carajás é ficar tenso durante as 24 horas do dia. A área de trabalho a céu aberto é de altíssimo risco, só no ano passado tivemos três vítimas aqui em um acidente na parte de soldagem e oficina, de um esmagamento de trabalhadores. O problema é que só existe fiscalização interna da Vale, o que acaba não apontando os erros”, denuncia.

O Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais (MPT-MG) apontou que houve uma avaliação técnica realizada pela própria Vale dois anos antes do crime de Brumadinho, ocorrido em janeiro de 2019, em que havia um cálculo de quanto seria gasto por vida em caso de rompimento da barragem.

“Caso a barragem de Brumadinho rompesse, a tendência seria morrer 300 pessoas. Morreram 270, ou seja, a Vale é muito boa nisso, em acertar relatório de morte”, ironiza Eduardo Armond, diretor do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção Pesada de Minas Gerais (SITICOP-MG), ao citar o documento da Vale denunciado pelo MPT.

De acordo com a “Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos — Definição das Consequências”, a vida de um trabalhador/trabalhadora, para a Vale, vale 9,2 milhões reais. 

Financeirização e terceirização
O professor de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luiz Gonzaga Belluzzo, tem estudado o comportamento dos últimos 40 anos de grandes empresas nacionais e internacionais que atuam no Brasil. Em suas pesquisas, Belluzzo aponta que a Vale se empenha em maximizar o valor dos acionistas financeiros e diminuir os custos trabalhistas.

“A Vale tem diminuído sistematicamente o investimento em manutenção de operações desde 2014. O orçamento de frentes importantes como saúde e segurança foi reduzido pela metade, de US$ 359 milhões para US$ 207 milhões, assim como o de pilhas e barragens de rejeitos, que foi de US$ 474 milhões para US$ 202 milhões”, acentua.

O professor mostra que a combinação letal está na forma como a Vale vai forjando o mundo do trabalho mineral. “Ao invés de fazer novos investimentos ela procura comprar empresas existentes e se associar às terceirizadas. Seguramente, isso causou Brumadinho, porque faz parte do processo geral de redução de custos operacionais. O que eles fazem é demitir os trabalhadores e não investir em segurança, isso tá em segundo plano. O risco de acidentes ou danos físicos aos trabalhadores não importa, o que importa é maximizar os lucros”, aponta Belluzzo.

A engenheira de segurança do trabalho Marta de Freitas, atuante no setor da mineração, acredita que a terceirização é uma das principais causas da precarização no ambiente de trabalho e os terceirizados são as maiores vítimas dos acidentes. “A terceirização traz para a empresa duas coisas – a redução dos custos e o aumento do lucro”.

Segundo Freitas, os terceirizados não entram nas estatísticas oficiais da avaliação do trabalho das grandes empresas e isso não ocorre apenas na Vale, mas em todas as mineradoras da região de Minas Gerais.

“Aquilo que é determinado para o trabalhador fazer em segurança não é compatível com as exigências de produção. Se o funcionário trabalha com toda a segurança não produz o que é demandado, se ele não faz do jeito e com a qualidade que são exigidos, ele é demitido. Nós sabemos que as empresas fazem o discurso da segurança e do trabalho adequados, mas não implementam isso. As regras são só para o mundo ver, mas o que acontece no chão da fábrica é diferente”, denuncia.

Crimes pelo mundo
A Vale é uma das maiores empresas de níquel do mundo, apenas em Sudbury, nas imediações de onde ocorreu o referido acidente, a empresa opera cinco minas com cerca de quatro mil funcionários. Judith Marshall, do Departamento de Assuntos Globais dos trabalhadores metalúrgicos do Canadá e membra da Articulação Internacional das Atingidas e Atingidos pela Vale (AV’s), observa que a partir do momento em que a empresa passou a impor seu ritmo de trabalho no país, os acidentes começaram a acontecer nas minas locais com maior frequência.

Em junho de 2011, dois trabalhadores morreram esmagados em outra mina da Vale em Sudbury. O sindicato dos trabalhadores local (United Steelworkers – USW) alegou, através de um inquérito público, que as mortes foram causadas por problemas de segurança generalizados. Em 2012, um trabalhador morreu na mina de Coleman, em Levack, também no Canadá. A Vale suspendeu as atividades por um tempo para revisar a segurança local. Em 2013, a Vale foi multada em mais de US $ 1 milhão, em Toronto, por violações de segurança em minas.

Judith também recorda que a chegada da Vale no Canadá trouxe uma tentativa de mudanças na relação de trabalho local com o objetivo de neutralizar os sindicatos. “Em 2006, quando a Vale chegou, a questão trabalhista ainda estava mais ou menos intacta, sem sentir todo o peso do ataque neoliberal ao trabalho. Um dos objetivos declarados da Vale era mudar a relação de gestão dos trabalhadores que existia e alinhá-la com a relação da Vale com seus trabalhadores globalmente. Falaram em querer um relacionamento direto, sem intermediários. E você sabe quem eram os intermediários – os sindicatos”, pontua.

Já em Moçambique, na África, um trabalhador morreu e um outro ficou ferido na mina de carvão da Vale no ano passado, na cidade de Moatize. A empresa alegou que o funcionário era da Leebert Belting, uma empresa que presta serviços na mina de carvão. Na série de crimes, ainda em 2020, uma criança morreu, outra teve uma perna amputada e outras três ficaram gravemente feridas em um acidente com mina terrestre dentro da área de assentamento feito pela Vale em Moçambique.